OS BILONTRAS
Maria Lucia Victor Barbosa
Na sua obra, “Os Bestializados”, o historiador mineiro José Murilo de Carvalho volta aos primórdios da República para apresentar uma visão história, política e social cuja essência, no meu entender, se repete nos dias atuais.
A essência está no modo de ser bilontra ou tribofeiro, característica do brasileiro como um todo. Explicando melhor, na revista O Bilontra, citada por Carvalho e editada em 1886, por Artur Azevedo, esse tipo é o espertalhão, o velhaco, o gozador ou tribofeiro.
Em 1891, ainda conforme o autor citado, Artur Azevedo lança outra revista, O Tribofe, termo ligado à trapaça e que caracteriza a capital da República onde tribofeiros estavam por toda parte: “na política, na bolsa, no câmbio, na imprensa, no teatro, nos bondes, nos aluguéis e no amor”. “Como diria o próprio tribofe: ‘Ah, minha amiga, nesta boa terra os mandamentos da lei de Deus são como as posturas municipais, ninguém respeita”.
José Murilo mostra que no Brasil “normas legais e hierarquias sociais foram aos poucos se desmoralizando, constituindo-se em um mundo alternativo de relacionamentos e valores onde predominam o deboche, a irreverência, a malícia”.
Essa mentalidade com toque carnavalesco me parece perfeita para explicar o porquê da popularidade do ex-presidente Lula da Silva. O povo consagrou um rei bilontra com o qual se identificou, um monarca debochado, irreverente, malicioso, piadista, informal, populista, dotado de oratória tosca e tarimba adquirida em palanques de sindicatos, adepto do “deixa a vida me levar”.
Lula da Silva também é um homem de rara sorte. Escapou da origem simples e ingressou no mundo de poder e riqueza sempre apoiado por compadres e companheiros. Recebeu, ao chegar à presidência o para-casa pronto do governo anterior, coisa que espertamente seu partido chamou de “herança maldita”, mas que foi copiada e tocada para frente sob as facilidades do céu de brigadeiro da situação externa, até 2009, quando adveio a crise internacional que aqui foi alcunhada de “marolinha”, bem ao estilo gozador do “salvador da pátria”.
A propaganda intensificou trapaças que alteraram a visão de realidade da infraestrutura, da Educação, da Saúde. Criativamente truques contábeis foram utilizados pelo Tesouro. A corrupção governamental foi tida como normal. Os exorbitantes privilégios do “rei e da família real”, que contrastaram com a oratória do “pobre operário” não chocaram os bilontras que nas pesquisas afirmaram: “se eu estivesse lá faria a mesma coisa”.
Quando de novo as eleições chegaram, bilontras hipnotizados pela arenga do líder dirigiram-se às urnas e, obedientes, elegeram Dilma Rousseff. Era a maneira de manter Lula lá.
E Lula continuou. Remontou o ministério à sua imagem e semelhança, conversa com sua comandada diariamente, conforme a imprensa. Estrategicamente, porém, o ex-presidente não se expõe, sendo que a presidente é mostrada com bastante parcimônia.
O ocultamento da sucessora pode se dar por dois motivos: primeiro, esconder aquela certa dificuldade de raciocinar com fluência que era evidente durante a campanha. Segundo, tentar evitar ao máximo a vinculação da verdadeira herança maldita à presidente. Naturalmente, os marqueteiros dirão que a blindagem se deve a uma estratégia premeditada para construir uma imagem da própria Rousseff. Não precisava. Ela não é Lula.
A herança maldita não inclui somente a vergonhosa manutenção em nosso território do terrorista Cesare Battisti, a compra de aviões franceses, o valor do salário mínimo, a insatisfação do PMDB com a distribuição de cargos, as críticas à política externa brasileira que apoia regimes de déspotas violadores de direitos humanos. A herança maldita, que emblematicamente começou com a “tragédia das pedras” na região serrana do Rio, inclui o único fator que os bilontras são capazes de perceber, pois, se estão cada vez mais cínicos, corrompidos, indiferentes à imoralidade pública reinante, logo começarão a se ressentir e a se inquietar quando perceberem a inflação descontrolada que corrói seu poder aquisitivo.
Para eleger sua sucessora o governo Lula não mediu consequências e no último ano bateu recorde de gastos. Despesas do Tesouro, INSS e Banco Central, que em 2003 representavam 15,14% do PIB, atingiram 19,14% oito anos depois. A escalada de gastos públicos continua e dificultará o trabalho do Banco Central para conter a inflação. Contudo, quando o relatório oficial do Fundo Monetário Internacional (FMI) denunciou a deterioração das contas públicas brasileiras, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, se limitou a ironizar de forma grosseira e arrogante dizendo: “Acho que o diretor-gerente (Dominique Strauss Kahn) saiu de férias e algum velho ortodoxo deve ter escrito esse relatório com essas bobagens sobre o Brasil”.
Ainda é cedo para julgar o governo Rousseff, mas pelo andar da carruagem, quando o ano começar depois do carnaval, os bilontras saberão se é bobagem ou não a escalada inflacionária.
Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga.
mlucia@sercomtel.com.br
domingo, 30 de janeiro de 2011
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Parabéns por tanta lucidez e precisão.
ResponderExcluirCara Maria Lucia,
ResponderExcluirinfelizmente, apaguei sem querer meu comentário. Serei mais direto. Eu concordo com a maior parte de suas palavras, no entanto não acredito ser tão acertado afirmar-se que o brasileiro como um todo seja bilontra. O motivo de minha discordância reside em me parecer tratar-se de uma generalização de um traço carioca (ou de um certo tipo que talvez nem exista mais, como cantava Chico Buarque) para todo o país. Penso que a imagem do malandro (aquele sujeito de "chinelos, navalha e baralho", alegre morador dos morros e subúrbios cariocas que usa de sua esperteza para sobreviver) tenha sido glamourizada à serviço de diversos interesses num passado não tão remoto e vendida como imagem nacional. Parece-me que os traços locais cariocas são tidos como nacionais, mas outros traços que não dizem respeito ao RJ são "regionalismos"; de modo, o "brasileiro" é malandro, mas o "mineirim" é comedido e desconfiado. Lembro, inclusive, que Evaldo Cabral de Mello situa José Murilo de Carvalho na "tradição saquarema" de nossa historiografia, demasiada presa ao centro político do país.
Por fim, gostaria de manifestar o apreço que lhe tenho e meu contentamento ao ler seus textos - o que ganha realce quando penso nas nulidades que são tidas como "intelectuais" apenas por se mostrarem críticas a esse estado de coisas que tão competentemente seus artigos apresentam. Seria uma grande alegria que pudéssemos discutir e, assim, eu pudesse aprender com a senhora.
Atenciosamente,
V.
Saudades de ler seus textos...Estive viajando de férias. Agora voltei ao normal.
ResponderExcluirVamos incrementar seu blog?
Eu não esqueci não, só não houve oportunidade.
Colei grau, fui viajar, etc...
Agora estou de volta!
Um abraço
Maria Lucia, a propaganda tem capacidade de criar modismo, transformar o brega em chique, tornar o feio na coisa mais linda do momento. E é justamente o que mostra o seu artigo. A propaganda é um recurso que podemos usar na tentativa de reverter a situação política atual (ao menos em parte).
ResponderExcluirNosso poder de divulgação é bem limitado, mesmo com o uso a Internet, mas se agirmos em bloco, unidos, ele se multiplica com rapidez.
Por isso, peço permissão para colocar este seu artigo n'A Casa da Mãe Joana. Temos quatro anos para agir com insistência e provar quem é o verdadeiro ex-presidente.
Aguardo sua autorização por email ju.cappel@gmail.com ou em um comentário em http://puteiro-nacional.blogspot.com/ Se der uma olhada neste blog, vai entender a espécie de campanha que estou fazendo para desvendar uma figura que não existe.
Um abração, Ju