sexta-feira, 28 de agosto de 2009

LIBERTAS QUAE SERA TAMEN

LIBERTAS QUAE SERA TAMEN
Maria Lucia Victor Barbosa

Sou de Minas Gerais. Belo Horizonte foi meu berço. Cirandas montanhosas fecharam círculos ferrosos sobre minha infância e busco às vezes na memória antigas canções de ninar que embalaram meu primeiro existir. Na juventude acostumei-me a galgar as montanhas dos sonhos e desde cedo trilhei o ideal da liberdade. Minha estrada vem de longe no rastro dos inconfidentes. Por isso sei conspirar entre nuvens rarefeitas ou á sombra de roseirais. Também sou capaz de subir e descer as ladeiras das recordações sem o menor cansaço. E, assim, lá nos confins das reminiscências, percebo um trilho serpenteando a perder de vista. Maria Fumaça solta um apito gemido e o som percorre fundo a alma fundindo-se com o cantar do galo que risca o alvorecer. Depois, num de repente, emerge o casarão de meu avô, tão imponente quanto seus bigodes brancos. Percorro salões antigos enfeitados de cortinas de crochê que balançam suavemente e acariciam meu rosto. Brisa nas janelas debruçadas para o mundo estreito da rua. Lá longe a Praça da Liberdade. Correrias infantis ao redor do coreto que desafia o tempo. E pores-do-sol. Muitos. Efêmeras pinceladas de Deus nos belos horizontes de minha terra. Sem mar, pelo menos céu e cor ficaram comigo. Manhãs de abril resplandecendo a poder de anil e sol. Tardes de maio com Maria coroada. Noites juninas de fogueiras e fogos enfeitando a alegria de viver hoje tão rara. Frios azulíssimos. Intensos. Flamejantes paixões juvenis bordadas de puro romantismo. Bailes ao som de Moonlight Serenade. Valsa da meia-noite. Além da varanda flores do campo em alaranjada ternura cobrindo terrenos baldios e calçadas numa rebeldia desgrenhada de caules e folhas. Saudade cobrindo de minério de ferro minha vida. Onde Minas? Onde os ideais de liberdade?
Agora, lonjuras. Londrina. Verde esmeraldino. Fog inglês em noites raras da Filha de Londres que se cobre com véu espesso e fica noivando no escuro. Curitiba é leitê quentê com chocolatê no clima civilizado de frios aconchegantes. Em Guarapuava a estátua de um anjo desceu da torre da catedral e se escondeu debaixo do campanário. Três Paranás: Norte, Sul, Centro-Oeste. Mineiros, paulistas, gaúchos, poloneses, italianos árabes, japoneses... Um mundaréu de cidades e etnias. Raízes de Minas, impossíveis de arrancar. Fincadas no coração. Corpo, alma, filhos plantados em terras roxas do Paraná. Trabalho. Muito trabalho. Sonhos perdidos. Sonhos construídos. Sonhos sempre a reconstruir.
No fundo de tudo, Pátria. Brasil tão pobre e tão rico. País do futuro vivendo no passado. No presente a ronda de perigos sem conta enquanto o povo aguarda a salvação. O povo sempre espera ser salvo. Mas não há salvadores. Quem sabe, apenas inconfidentes. Guardiões da liberdade. Sentinelas do porvir.
Mas, e Minas? Minas não há mais? Foi o que disse Drummond. Pode ser que sim, pode ser que não. Quanto a mim, ainda trago ouro em pó nas veias e sempre repito com essa teimosia que me faz seguir o estandarte da liberdade: libertas quae sera tamen – liberdade ainda que tardia.
E-mail: mlucia@sercomtel.com.br

2 comentários:

  1. Maria Lucia:
    Mas que joia de cronica. Singela, pessoal, ardente de sentimentos e lembrancas que nao voltam mais.
    Gostei muito e lhe cumprimento pela inspiracao e talento, pois escritores ao mesmo tempo criativos e modestos contam-se hoje nos dedos.
    Abracos do
    Salo Yakir

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  2. Olá, queria o contato do Salo Yakir. Por Favor, remeter a: jeanyeshua@hotmail.com

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