ENTREVISTA COM KARL MARX
Maria Lucia Victor Barbosa
Finalmente ele aceitou meu convite para uma entrevista. Eu mal podia acreditar. Estaria frente a frente com o homem que teve o mérito de desvendar aspectos novos da sociedade, apesar da inexatidão científica de suas profecias ou da dose de utopia e de messianismo contidos em sua obra. Mas seja lá como for o monumental pensamento de Karl Marx havia povoado minha juventude com sonhos revolucionários de um romantismo inigualável.
Assim sendo, meu coração batia de ansiedade enquanto me dirigia para o lugar do encontro. Ele determinara que o local fosse num dos mais belos shoppings centers de São Paulo, o Higienópolis, verdadeiro templo do consumo desvairado. Como desobedecer? Para completar tamanha excentricidade, o alemão barbudo exigira ser entrevistado enquanto tomássemos lanche no McDonald’s, o que estranhei bastante. Aliás, fiquei imaginando o que diria se nos visse o filósofo e baderneiro francês José Bové, produtor de queijos de cabra que estudou em Harvard, e que nas horas vagas faz protestos contra os Estados Unidos, homem cuja birra aos lanches do McDonald’s acabou por conduzi-lo ao estrelato em 2001 num encontro anti-Davos, palco petista de Porto Alegre onde, ao que parece, foram proibidos hambúrgueres e servido todo dia um prato de indigesta salada russa. Não apurei na ocasião se o cardápio continha ou não produtos transgênicos.
Pois é, se Marx queria ir ao símbolo diabólico do capitalismo quem era eu para contrariar sua vontade? Então, na hora combinada postei-me na entrada da maldita lanchonete em meio a uma democrática e pequena multidão de anônimos comilões de sanduíches, formada por jovens da periferia e de pessoas da classe média que se distinguem, como se sabe, pelo terrível vício de ingerir coca-cola, outro demoníaco produto que mantém o Terceiro Mundo açucarado e alienado aos apelos gastronômicos do imperialismo.
Depois de quarenta minutos de atraso, que me angustiaram por uma eternidade, ele surgiu como o russo Anienkof o descrevera. Sua cabeça parecia a de um leão de basta cabeleira grisalha, as mãos cobertas de pêlos, as maneiras desajeitadas, todavia orgulhosas, arrogantes e autoritárias que sem dúvida ficaram como legado para muitos dos seus seguidores. Todo esse aspecto conferia com o que eu esperava ver, menos o traje. Em vez da roupa desalinhada e preta Marx vestia uma camiseta branca “dry fit” e ostentava calça jeans de griffe. Nos pés, botas, à moda Bush e Fox.
No que chegou me ordenou com sua voz metálica e vibrante feita para emitir juízos radicais sobre os homens e as coisas, para pronunciar palavras imperativas: “A senhora me pega um big mac com fritas e uma coca de 500 ml que na seca não vou falar nada”. Obediente, fui até a fila para adquirir o lanche, enquanto o majestoso Karl Marx se aboletava numa mesinha da praça de alimentação acomodando suas sacolas de compras na cadeira vaga. Tudo nos conformes, eu com meu queijo quarteirão e meu guaraná bem brasileiro desferi a primeira pergunta com voz trêmula:
ML: Aonde e em que ano o senhor nasceu? Marx: Em Tréves, em 1818. ML: Gostaria de falar sobre seus pais? Marx: Preferia não falar. Meu pai era um advogado judeu convertido ao luteranismo que queria que eu seguisse a carreira jurídica para a qual não tinha vocação. Ele implicava com meu gosto pela poesia. Dizia que não me queria ver transformado num poetinha qualquer. Minha mãe vivia me dizendo que em vez de ficar escrevendo o Capital eu devia conseguir algum para mim. Ambos me aborreciam com seus sermões sobre minha vida boêmia em Bonn, quando eu, ainda jovem, gastava um dinheirão e tomava pileques homéricos. Achava-os muito burgueses. Hoje entendo que as mães têm sempre razão. ML: O senhor teve um grande amigo, Engels. Marx: De fato, Engels muito me ajudou. Fez vários artigos que eu assinava quando escrevia no New York Daily Tribune, escreveu obras comigo, me auxiliou financeiramente inúmeras vezes. Um amigão sem o qual teria morrido de fome com minha família, e que andei depois escorraçando, mas no final nos entendemos apesar dele ter ficado muito magoado. ML: E sua esposa? Marx: Chamava-se Jenny von Westphalen e era de família nobre. Uma santa. Suportou nossa vida miserável porque eu não trabalhava, sem se queixar. Dois de nossos filhos e uma filha morreram porque eu não tinha recursos para tratá-los, e a Jenny agüentou firme. ML: Mas esse devotamento de Jenny não o impediu de ter uma filha com a governanta Helena. Marx: Prefiro não falar sobre o assunto. ML: Então me fale sobre suas idéias. Resuma seu pensamento sobre religião. Marx: a religião é o ópio do povo e eu sou materialista. ML: O senhor dizia que a colonização dos países do Terceiro Mundo era a condição fundamental para a criação do capitalismo de onde sairia um proletariado revolucionário, continua achando isso? Marx: Como sabe a professora a teoria na prática é outra. Assim, deu tudo errado. Previ o capitalismo plenamente desenvolvido para a Alemanha e a Inglaterra, saiu na Rússia e aí, danou-se. Quanto ao capitalismo dos “boas vidas” é um arremedo, seu projeto de socialismo possui teor medieval, não têm propostas concretas e suas revoluções só servem para que tiranetes se locupletem no poder. Estou desencantado. Para culminar o capitalismo vive superando suas crises e se tornou algo diferente daquele do meu tempo. Chamam a isso de neoliberalismo. Também vejo marxistas triviais repetindo palavras de ordem. Eles não conhecem minhas obras e, desse modo, sua ideologia é indigente. Aliás, sempre disse para Engels que não sou marxista. Para piorar, os chamados marxistas são intelectuais burgueses, que aqui em São Paulo comem no Antiquarius e se vestem na Daslú. Já o proletariado não quer saber de mim, mas de melhorar de vida como, aliás, aconteceu. ML: O senhor é contra a globalização? Marx: Como poderia ser se escrevi no final do “Manifesto do Partido Comunista:” “Proletários de todo o mundo, uni-vos”. ML: Bem, agradecendo a honra dessa entrevista gostaria que deixasse suas palavras finais para a esquerda brasileira. Marx: Jamais a ignorância serviu a alguém. E me diga, senhora, aqui servem cerveja Kaiser?
Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga, escritora.
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
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Não sabia que a Sra tinha esta entrevista no seu currículo e modesta nunca nos contou! Muito interessante.
ResponderExcluirCida Fraga